sábado, 30 de novembro de 2013

Das Catequeses de São Cirilo de Jerusalém, bispo (Cat. 15,1-3: PG 33,870-874) (Séc. IV)



As duas vindas de Cristo

"Anunciamos a vinda de Cristo: não apenas a primeira, mas também a segunda, muito mais gloriosa. Pois a primeira revestiu um aspecto de sofrimento, mas a segunda manifestará a coroa da realeza divina.
Aliás, tudo o que concerne a nosso Senhor Jesus Cristo tem quase sempre uma dupla dimensão. Houve um duplo nascimento: primeiro, ele nasceu de Deus,antes dos séculos; depois, nasceu da Virgem, na plenitude dos tempos. Dupla descida: uma, discreta como a chuva sobre a relva; outra, no esplendor, que se realizará no futuro.
Na primeira vinda, ele foi envolto em faixas e reclinado num presépio; na segunda, será revestido num manto de luz. Na primeira, ele suportou a cruz, sem recusar a sua ignomínia; na segunda, virá cheio de glória, cercado de uma multidão de anjos.
Não nos detemos, portanto, somente na primeira vinda, mas esperamos ainda, ansiosamente, a segunda. E assim como dissemos na primeira: Bendito o que vem em nome do Senhor (Mt 21,9), aclamaremos de novo, no momento de sua segunda vinda, quando formos com os anjos ao seu encontro para adorá-lo: Bendito o que vem em nome do Senhor.
Virá o Salvador, não para ser novamente julgado, mas para chamar a juízo aqueles que se constituíram seus juízes. Ele, que ao ser julgado, guardara silêncio, lembrará as atrocidades dos malfeitores que o levaram ao suplício da cruz, e lhes dirá: Eis o que fizestes e calei-me (Sl 49,21).
Naquele tempo ele veio para realizar um desígnio de amor, ensinando aos homens com persuasão e doçura; mas, no fim dos tempos, queiram ou não, todos se verão obrigados a submeter-se à sua realeza.
O profeta Malaquias fala dessas duas vindas: Logo chegará ao seu templo o Senhor que tentais encontrar (Ml 3,1). Eis uma vinda.
E prossegue, a respeito da outra: E o anjo da aliança, que desejais. Ei-lo que vem, diz o Senhor dos exércitos; e quem poderá fazer-lhe frente, no dia de sua chegada? E quem poderá resistir-lhe, quando ele aparecer? Ele é como o fogo da forja e como a barrela dos lavadeiros; e estará a postos, como para fazer derreter e purificar (Ml 3,1-3).
Paulo também se refere a essas duas vindas quando escreve a Tito: A graça de Deus se manifestou trazendo salvação para todos os homens. Ela nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas e a viver neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade, aguardando a feliz esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo (Tt 2,11-13). Vês como ele fala da primeira vinda, pela qual dá graças, e da segunda que esperamos?
Por isso, o símbolo da fé que professamos nos é agora transmitido, convidando-nos a crer naquele que subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim. Nosso Senhor Jesus Cristo virá portanto dos céus, virá glorioso no fim do mundo, no último dia. Dar-se-á a consumação do mundo,e este mundo que foi criado será inteiramente renovado."

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Como São Francisco domesticou o ferocissimo lobo de Gubio





        No tempo em que São Francisco morava na cidade de Gúbio apareceu no condado um lobo grandíssimo, terrível e feroz, o qual não somente devorava os animais como os homens, de modo que todos os citadinos estavam tomados de grande medo, porque freqüentes vezes ele se aproximava da cidade; e todos andavam armados quando saíam da cidade, como se fossem para um combate; contudo quem sozinho o encontrasse não se poderia defender. E o medo desse lobo chegou a tanto que ninguém tinha coragem de sair da cidade.
         Pelo que São Francisco, tendo compaixão dos homens do lugar, quis sair ao encontro do lobo, se bem que os citadinos de todo não o aconselhassem: e fazendo o sinal da santa cruz, saiu. da cidade com os seus companheiros, pondo toda a sua confiança em Deus. E temendo os outros ir mais longe, São Francisco tomou o caminho que levava ao lugar onde estava o lobo. 
         E eis que, vendo muitos citadinos, os quais tinham vindo para ver aquele milagre, o dito lobo foi ao encontro de São Francisco com a boca aberta: e chegando-se a ele São Francisco fez o sinal da cruz e o chamou a si, e disse-lhe assim:
       “Vem cá, irmão lobo, ordeno-te da parte de Cristo que não faças mal nem a mim nem a ninguém”.
        Coisa admirável! Imediatamente após São Francisco ter feito a cruz, o lobo terrível fechou a boca e cessou de correr; e dada a ordem, vem mansamente como um cordeiro e se lança aos pés de São Francisco como morto.



  Então São Francisco lhe falou assim:
 “Irmão lobo, tu fazes muitos danos nesta terra, e grandes malefícios, destruindo e matando as criaturas de Deus sem sua licença; e não somente mataste e devoraste os animais, mas tiveste o ânimo de matar os homens feitos à imagem de Deus; pela qual coisa és digno da forca, como ladrão e homicida péssimo: e toda a gente grita e murmura contra ti, e toda esta terra te é inimiga.
   “Mas eu quero, irmão lobo, fazer a paz entre ti e eles; de modo que tu não mais os ofenderás e eles te perdoarão todas as passadas ofensas, e nem homens nem cães te perseguirão mais”.
         Ditas estas palavras, o lobo, com o movimento do corpo e da cauda e das orelhas e com inclinação de cabeça, mostrava de aceitar o que São Francisco dizia e de o querer observar.
         Então São Francisco disse: “Irmão lobo, desde que é de teu agrado fazer e conservar esta paz, prometo te dar continuamente o alimento enquanto viveres, pelos homens desta terra, para que não sofras fome; porque sei bem que pela fome é que fizeste tanto mal. Mas, por te conceder esta grande graça, quero, irmão lobo, que me prometas não lesar mais a nenhum homem, nem a nenhum animal: prometes-me isto?”

          E o lobo, inclinando a cabeça, fez evidente sinal de que o prometia. E São Francisco disse: “Irmão lobo, quero que me dês prova desta promessa, a fim de que possa bem confiar“.



    E estendendo São Francisco a mão para receber o juramento, o lobo levantou o pé direito da frente, e domesticamente o pôs sobre a mão de São Francisco, dando-lhe o sinal como podia. E então disse São Francisco: “Irmão lobo, eu te ordeno em nome de Jesus Cristo que venhas agora comigo sem duvidar de nada, e vamos concluir esta paz em nome de Deus”.
      E o lobo obediente foi com ele, a modo de um cordeiro manso; pelo que os citadinos, vendo isto, muito se maravilharam. E subitamente esta novidade se soube em toda a cidade; pelo que toda a gente, homens e mulheres, grandes e pequenos, jovens e velhos, vieram à praça para ver o lobo com São Francisco.
      E estando bem reunido todo o povo, São Francisco se pôs em pé e pregou-lhe dizendo, entre outras coisas, como pelos pecados Deus permite tais pestilências; e que muito mais perigosa é a chama do inferno, a qual tem de durar eternamente para os danados, do que a raiva do lobo, o qual só pode matar o corpo; quanto mais é de temer a boca do inferno, quando uma tal multidão tem medo e terror da boca de um pequeno animal! “Voltai, pois, caríssimos, a Deus, e fazei digna penitência dos vossos pecados, e Deus vos livrará do lobo no tempo presente, e no futuro do fogo infernal”.
         E acabada a prédica, disse São Francisco: “Ouvi, irmãos meus; o irmão lobo, que está aqui diante de vós, prometeu-me e prestou-me juramento de fazer as pazes convosco e de não vos ofender mais em coisa alguma, se lhe prometerdes de dar-lhe cada dia o alimento necessário; e eu sirvo de fiador dele de que firmemente observará o pacto de paz”.
        Então todo o povo a uma voz prometeu nutri-lo continuadamente. E São Francisco diante de todos disse ao lobo: “E tu, irmão lobo, prometes observar com estes o pacto de paz, e que não ofenderás nem aos homens nem aos animais nem a criatura nenhuma?”
        E o lobo ajoelha-se e inclina a cabeça, e com movimentos mansos de corpo e de cauda e de orelhas demonstra, quanto possível, querer observar todo o pacto.

    Disse São Francisco: “Irmão lobo, quero, do mesmo modo que me prestaste juramento desta promessa, também diante de todo o povo me dês segurança de tua promessa, e que não me enganarás sobre a caução que prestei por ti”. Então o lobo, levantando a pata direita, colocou-a na mão de São Francisco.
         Pelo que, depois deste fato, e de outros acima narrados, houve tanta alegria e admiração em todo o povo, tanto pela devoção do santo, e tanto pela novidade do milagre e tanto pela pacificação do lobo, que todos começaram a clamar para o céu, louvando e bendizendo a Deus, o qual lhes havia mandado São Francisco, que por seus méritos os havia livrado da boca da besta cruel.
         E depois o dito lobo viveu dois anos em Gúbio; e entrava domesticamente pelas casas de porta em porta, sem fazer mal a ninguém, e sem que ninguém lho fizesse; e foi nutrido cortesmente pela gente; e andando assim pela cidade e pelas casas, jamais nenhum cão ladrava atrás dele.
       Finalmente, depois de dois anos o irmão lobo morreu de velhice: pelo que os citadinos tiveram grande pesar, porque, vendo-o andar assim mansamente pela cidade, se lembravam melhor da virtude e da santidade de São Francisco.

Do tratado sobre a morte, de São Cipriano, bispo e mártir (Cap.18.24.26:CSEL3,308.312-314) (Séc.III)



Superemos o pavor da morte
com o pensamento da imortalidade

          "Lembremo-nos de que devemos fazer a vontade de Deus e não a nossa, de acordo com a oração que o Senhor ordenou ser rezada diariamente. Que coisa mais fora de propósito, mais absurda: pedimos que a vontade de Deus seja feita e quando ele nos chama e nos convida a deixar este mundo, não obedecemos logo à sua ordem! Resistimos, relutamos e, quais escravos rebeldes, somos levados cheios de tristeza à presença de Deus, saindo daqui constrangidos pela necessidade, não por vontade dócil. E ainda queremos ser honrados com os prêmios celestes a que chegamos de má vontade. Por que então oramos e pedimos que venha o reino dos céus, se o cativeiro terreno nos encanta? Por que, com preces freqüentemente repetidas, suplicamos que se apresse o dia do reino, se maior desejo e mais forte vontade são servir aqui ao demônio do que reinar com Cristo?
         Se o mundo odeia o cristão, por que tu o amas, a ele que te aborrece, e não preferes seguir a Cristo que te remiu e te ama? João em sua carta clama, fala e exorta a que não amemos o mundo, deixando-nos levar pelos desejos da carne: Não ameis o mundo nem o que é do mundo. Quem ama o mundo não tem em si a caridade do Pai; porque tudo quanto é do mundo é concupiscência dos olhos e ambição temporal. O mundo passará e sua concupiscência; quem, porém, fizer a vontade de Deus, permanecerá eternamente (cf. 1Jo 2,15-17). Ao contrário, tenhamos antes, irmãos diletos, íntegro entendimento, fé firme, virtude sólida, preparados para qualquer desígnio de Deus. Repelido o pavor da morte, pensemos na imortalidade que se lhe seguirá. Com isso, manifestamos ser aquilo que acreditamos. Irmãos caríssimos, importa meditar e pensar amiúde em que já renunciamos ao mundo e vivemos aqui provisoriamente como peregrinos e hóspedes. Abracemos o dia que designará a cada um sua morada, restituindo-nos ao paraíso e ao reino, uma vez arrebatados daqui e quebrados os laços terrenos. Qual o peregrino que não se apressa em voltar à pátria? Nossa pátria é o paraíso. O grande número de nossos queridos ali nos espera: pais, irmãos, filhos. Deseja estar conosco para sempre a grande multidão já segura de sua salvação, ainda solícita pela nossa. Quanta alegria para eles e para nós chegarmos nós até eles e a seu abraço! Que prazer estar ali, no reino celeste, sem medo da morte, tendo a vida para sempre! Que imensa e inesgotável felicidade!
         Lá, o glorioso coro dos apóstolos; lá, o exultante grupo dos profetas; lá, o incontável povo dos mártires coroados de glória e de triunfo pelos combates e sofrimentos; lá as virgens vitoriosas, que pelo vigor da continência corporal subjugaram a concupiscência da carne;lá remunerados os misericordiosos, que pelos alimentos e liberalidades aos pobres fizeram obras de justiça, e, observando o preceito do Senhor, transferiram seu patrimônio terreno para os tesouros celestes. Para lá, irmãos caríssimos, corramos com ávida sofreguidão. Que Deus considere este nosso modo de pensar! Que Cristo olhe este propósito do espírito e da fé! Os maiores prêmios de sua caridade ele os dará àquele, cujos desejos forem intensos." 

Dos Sermões de São Leão Magno, papa (Sermo 92,1.2.3:PL 54,454-455) (Séc.V)




Qual a obra, tal o ganho


"O Senhor diz: Se vossa justiça não superar de muito a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus (Mt 5,20). Como será superior à deles, a não ser que a misericórdia esteja acima da condenação? (cf. Tg 2,13). E que de mais justo, de mais digno do que a criatura, feita à imagem e semelhança de Deus, imitar seu criador? A ele que decidiu a renovação e santificação dos fiéis pela remissão dos pecados para que, afastado o rigor do castigo e acabada a pena, recupere o réu a inocência, e o fim dos crimes seja a origem das virtudes?
Não é pela rejeição da lei que a justiça cristã pode superar a dos escribas e fariseus, mas recusando sua compreensão carnal. Por exemplo, o Senhor deu aos discípulos a regra do jejum. Quando jejuardes, não fiqueis tristes como os hipócritas. Ficam com o rosto abatido para mostrar aos homens que estão jejuando. Na verdade, eu vos digo: já receberam sua recompensa (Mt 6,16). Que recompensa? Não é o elogio dos outros? Por causa desta ambição, muitos ostentam a aparência da justiça: cobiça-se a ilusão da fama, de modo que a iniquidade, conhecida ocultamente, se alegre com a boa opinião enganadora.
Para quem ama a Deus, basta-lhe agradar a quem ama; nenhuma recompensa maior espera do que o próprio amor. Assim a caridade vem de Deus porque Deus mesmo é a caridade. Quem é piedoso e casto alegra-se por vivê-la de tal modo que não deseja coisa alguma, exceto a Deus, para seu regozijo. É inteiramente verdade aquilo que o Senhor diz: Onde está teu tesouro aí está teu coração (Mt 6,21). O tesouro do homem não é o acúmulo de seus frutos e a soma de seus trabalhos? Aquilo que se semeou, isto se colherá (Gl 6,7) , e qual o trabalho, tal o ganho; e onde põe o seu prazer, aí se prende o coração. Mas, por haver muitos gêneros de riquezas, há matérias diferentes para o gozo, logo, tesouro é para cada qual a inclinação de seu desejo: se feito de apetites terrenos, sua participação não fará ninguém feliz, mas desgraçado.
Ao contrário, aqueles que têm gosto pelas coisas do alto e não terenas não se preocupam com as perecíveis mas com as eternas, possuem encerradas em si riquezas incorruptíveis, das que disse o Profeta: Chegaram nosso tesouro e salvação, sabedoria, disciplina e piedade da parte do Senhor; são estes os tesouros da justiça (Is 33,6 Vulg.) pelos quais, com o auxílio de Deus, até os bens da terra serão transferidos para os céus. De fato, são muitos que usam como meios de misericórdia as riquezas recebidas de outros pelo direito ou adquiridas de outro modo. Distribuindo para sustento dos pobres aquilo que lhes sobra, ajuntam para si riquezas que não podem ser perdidas; o que reservaram para esmolas não está sujeito a nenhuma perda. Com justiça, então, eles mantêm seu coração onde está seu tesouro; porque a maior felicidade consiste em trabalhar para que cresçam estas riquezas, sem temor de perdê-las."




Do Opúsculo sobre a oração, de Orígenes, presbítero (Cap. 25: PG 11, 495-499) (Séc. III)



Venha o teu reino


"O Reino de Deus, conforme as palavras de nosso Senhor e Salvador, não vem visivelmente, nem se dirá: Ei-lo aqui ou ei-lo ali; mas o reino de Deus está dentro de nós (cf. Lc 16,21), pois a palavra está muito próxima de nossa boca e em nosso coração (cf. Rm 10,8). Donde se segue, sem dúvida nenhuma, que quem reza pedindo a vinda do reino de Deus pede - justamente por ter em si um início deste reino - que ele desponte, dê frutos e chegue à perfeição.
Pois Deus reina em todo o santo e quem é santo obedece às leis espirituais de Deus, que nele habita como em cidade bem administrada. Nele está presente o  Pai e, junto com o Pai reina Cristo na pessoa perfeita, segundo as palavras: Viremos a ele e nele faremos nossa morada  (Jo 14,23).
Então o reino de Deus, que já está em nós, chegará por nosso contínuo adiantamento à plenitude, quando se completar o que foi dito pelo Apóstolo: sujeitados todos os inimigos, Cristo entregará o reino a Deus e Pai, a fim de que Deus seja tudo em todos(cf. 1 Cor 15,24.28). Por isto, rezemos sem cessar, com aquele amor que pelo Verbo se faz divino; e digamos a nosso Pai que está nos Céus: Santificado seja teu nome, venha o teu reino (Mt 6,9-10).
É de se notar também a respeito do reino de Deus: da mesma forma que não há participação da justiça com a iniquidade nem sociedade da luz com as trevas nem pacto de Cristo com Belial. (cf. 2 Cor 6,14-15), assim o reino de Deus não pode subsistir junto com o reino do pecado.
Por conseguinte, se queremos que Deus reine em nós, de modo algum reine o pecado em nosso corpo mortal (Rm 6,12), mas mortificaremos nossos membros que estão na terra (cf. C1 3,5) e produzamos fruto no Espírito. Passeie, então, Deus em nós como em paraíso espiritual, e reine só ele, junto com seu Cristo; e que em nós se assente   à destra de sua virtude espiritual, objeto de nosso desejo. Assente-se até que seus inimigos todos que existem em nós sejam reduzidos a escabelo de seus pés (S1 98,5), lançados fora todo principado, potestade e virtude.
Tudo isto pode acontecer a cada um de nós e ser destruída a última inimiga, a morte (1 Cor 15,26). E Cristo diga também dentro de nós: Onde está, ó morte, teu aguilhão? Onde está, inferno, tua vitória? (1 Cor 15,55;cf. Os 13,14)Já agora, portanto, o corruptível em nós se revista de santidade e de incorruptibilidade, destruída a morte, vista a imortalidade paterna (cf. 1 Cor 15,54), para que, reinando Deus, vivamos dos bens do novo nascimento e da ressurreição."

Das Homilias atribuídas a São Macário, bispo (Hom. 28:PG34,710-711) (Séc.IV)




Ai da alma em que não habita Cristo


"Deus outrora, irritado contra os judeus, entregou Jerusalém como espetáculo aos gentios; e foram dominados por aqueles que os odiavam; não havia mais festas nem oblações.De igual modo, irado contra a alma por ter transgredido o mandamento, entregou-a aos inimigos que a seduziram e a deformaram.
Se uma casa não for habitada pelo dono, ficará sepultada na escuridão, desonra, desprezo, repleta de toda espécie de imundícia. Também a alma, sem a presença de seu Deus, que nela jubilava com seus anjos, cobre-se com as trevas do pecado, de sentimentos vergonhosos e de completa infâmia.
Ai da estrada por onde ninguém passa nem se ouve voz de homem! Será morada de animais. Ai da alma, se nela não passeia Deus, afugentando com sua voz as feras espirituais da maldade! Ai da casa não habitada por seu dono! Ai da terra sem o lavrador que a cultiva! Ai do navio, se lhe falta o piloto; sacudido pelas ondas e tempestades do mar, soçobrará! Ai da alma que não tiver em si o verdadeiro piloto, o Cristo! porque lançada na escuridão de mar impiedoso e sacudida pelas ondas das paixões, jogada pelos maus espíritos como em tempestade de inverno, encontrará afinal a morte.
Ai da alma se lhe falta Cristo, cultivando-a com diligência, para que possa germinar os bons frutos do Espírito! Deserta, coberta de espinhos e de abrolhos, terminará por encontrar, em vez de frutos, a queimada. Ai da alma, se seu Senhor, o Cristo, nela não habitar! Abandonada, encher-se-á com o mau cheiro das paixões, virará moradia dos vícios.
O agricultor, indo lavrar a terra, deve pegar os instrumentos e vestir a roupa apropriada para o trabalho; assim também Cristo, o rei celeste e verdadeiro agricultor, ao vir à humanidade, deserta pelo vício, assumiu um corpo e carregou, como instrumento, a cruz.
Lavrou a alma desamparada, arrancou-lhe os espinhos e abrolhos dos maus espíritos, extirpou a cizânia do pecado e lançou ao fogo toda a erva de suas culpas. Tendo-a assim lavrado com o lenho da cruz, nela plantou maravilhoso jardim do Espírito, que produz toda espécie de frutos deliciosos e agradáveis a Deus, seu Senhor."

Walsingham, a Loreto Inglesa


     Estamos assistindo com grande alegria a conversão ao catolicismo de muitas personalidades do Reino Unido, bem como de grande número de anglicanos comuns, portanto convém rezarmos a Nossa Senhora de Walsingham, pelo crescimento tanto numérico quanto em profundidade desse providencial movimento. Que Ela converta a Inglaterra à Igreja verdadeira, restaure o acendrado fervor religioso da época de Santo Agostinho da Cantuária e de seus heróicos companheiros.
     Com efeito, Walsingham é o principal título com que Nossa Senhora há cerca de mil anos vem aspergindo suas graças naquele reino, a partir do priorado agostiniano situado na região de mesmo nome, fundado em 1016. 
     Localiza-se ele a poucos quilômetros do Mar do Norte, numa das renomadas campinas verdejantes e ajardinadas da Inglaterra, no território de Norfolk, cujos Duques constituíram uma grande estirpe que manteve a fidelidade a Roma, em meio à generalizada apostasia anglicana. Em 1016 já vivia Santo Eduardo o Confessor, e poucos anos antes havia reinado seu tio, Santo Eduardo o Mártir.
     Desde o início, os insignes favores concedidos por Nossa Senhora naquele santuário tornaram-no objeto de frequentes peregrinações, que partiam de toda a Inglaterra e até do Continente europeu. Ainda no século atual é conhecido comoPalmers’Way (Via dos Peregrinos) o principal caminho que conduz a Walsingham, através de Newmarket, Brandon e Fakenham.
O Santuário atualmente
     Muitas foram as dádivas de terras, prebendas e igrejas obsequiadas aos cônegos agostinianos de Walsingham em virtude da grande devoção mariana arraigada na população britânica, e dos muitos milagres alcançados através das súplicas dirijas a Nossa Senhora de Walsingham. O Rei Henrique III para lá peregrinou em 1241; Eduardo I, em 1280e 1296; Eduardo 11, em 1315; e Henrique VI, em 1455.
     Eduardo I nutria grande devoção a Nossa Senhora de Walsingham. Atribuiu a Ela o fato de se ter salvado de um desastre. Certo dia, num intervalo entre suas ocupações, jogava xadrez quando subitamente lhe veio a idéia de se levantar do assento, sem explicar por que lhe ocorria tal impulso. Um instante depois grande pedra desprendeu-se da abóbada da sala onde estava o Rei e caiu sobre o lugar que acabava de deixar. Tal fato fez com que redobrasse o amor que votava à Virgem.
     Henrique VIII, em 1513, muito antes de sua apostasia, chegou a peregrinar descalço a Walsingham. Em 1511, por exemplo, tal era o prestígio do santuário mariano que o ímpio humanista Erasmo de Rotterdam foi visitá-lo, partindo de Cambridge, em cumprimento de um voto. Terá sido um resíduo de fé nele existente ou uma jogada para prestigiar-se junto aos católicos ingleses? Qualquer que tenha sido a causa da peregrinação, não impediu que o humanista deixasse como oferenda a Nossa Senhora louvores escritos em versos gregos. Anos depois, num opúsculo, Erasmo comentou a riqueza e a magnificência de Walsingham.
     De modo trágico (embora coerente com seus pérfidos princípios) a Revolução protestante não poupou o santuário: seus tesouros foram espoliados, destruiu-se o priorado, foi desmantelada a igreja. Hoje, felizmente, está ela restaurada atraindo um fluxo considerável de fiéis.
     Qual a origem dessa admirável devoção? Nossa Senhora apareceu à nobre Lady Richeldis de Faverches, mostrando-lhe misticamente a Santa Casa de Nazaré, para que, tomando-lhe as medidas exatas, edificasse uma igual em Walsingham. Como tem ocorrido em outros países e épocas, a vidente ofereceu certa resistência para acreditar em algo tão extraordinário, como seja uma inesperada incumbência vinda diretamente do Céu. Assim, Nossa Senhora teve que repetir o pedido em três ocasiões diferentes, a fim de que Richeldis pusesse mãos à obra. Seu filho, Geoffrey, e o sucessor deste, Richard, Duque de Gloucester, solicitaram e obtiveram que a Ordem de Santo Agostinho definitivamente cuidasse do culto da Santíssima Virgem no lugar por Ela escolhido.
     Quando Lady Richeldis começou a construção da capela, observou certa manhã, com espanto, olhando para o prado, dois trechos planos do terreno misteriosamente não atingidos pelo orvalho. Aquelas duas partes correspondiam exatamente às dimensões da planta da Santa Casa de Nazaré, que Lady Richeldis havia medido durante sua visão.
     É digna de nota a semelhança do fato prodigioso presenciado por Lady Richeldis com a demarcação do terreno da Basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma, e mais ainda com o milagre do véu de Gedeão, relatado no Antigo Testamento.
     Em 2011 o Santuário comemorou 950 anos e recebe peregrinos do mundo inteiro. Embora a festa de Nossa Senhora de Walsingham seja comemorada no dia 24 de setembro, não podiamos deixar de prestar esta homenagem a Ela antes do término deste ano.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Do Tratado sobre o Reino de Jesus, de São João Eudes,presbítero (Pars 3,4:Operaomnia 1,310-312) (Séc.XVI)



O mistério de Cristo em nós e na Igreja


              "Cabe-nos imitar e completar em nós os estados e mistérios de Cristo e pedir-lhe continuamente que os leve a termo e os perfaça em nós e na Igreja inteira.
               Porque os mistérios de Jesus ainda não estão totalmente levados à sua perfeição e realizados. Na pessoa de Jesus, sim, não, porém, em nós, seus membros, nem na Igreja, seu Corpo místico. Por querer o Filho de Deus comunicar, estender de algum modo e continuar seus mistérios em nós e em toda a sua Igreja, determinou tanto as graças que nos concederá,quanto os efeitos que quer produzidos em nós por esses mistérios. Por esta razão deseja completá-los em nós.
          Por isso, São Paulo diz que Cristo é completado na Igreja e que todos nós colaboramos para sua edificação e para a plenitude de sua idade (cf. Ef 4,13), isto é, a idade mística que tem em seu Corpo místico, mas que só no dia do juízo será plena. Em outro lugar, diz o mesmo Apóstolo que completa em sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1,24).
         Deste modo, o Filho de Deus decidiu que seus estados e mistérios seriam completados e levados à perfeição em nós. Quer levar à perfeição em nós o mistério de sua encarnação, nascimento, vida oculta, quando se forma e renasce em nossa alma pelos sacramentos do santo batismo e da divina eucaristia e nos dá vivermos a vida espiritual e interior, escondida com ele em Deus (Cl 3,3).
           Quer ainda levar à perfeição em nós o mistério de sua paixão, morte e ressurreição que nos fará padecer, morrer e ressurgir com ele. E, finalmente, quer completar em nós o estado de vida gloriosa e imortal, quando nos fará viver com ele e nele a vida gloriosa e perpétua nos céus. Assim quer consumar e completar seus outros estados, outros mistérios em nós e em sua Igreja; deseja comunicá-los a nós e partilhá-los conosco e por nós continuá-los e propagá-los.
                Assim, os mistérios de Cristo não estarão completos antes daquele tempo que marcou para o término destes mistérios em nós e na Igreja, isto é,  antes do fim do mundo."

Dos Comentários sobre os Salmos, de Santo Agostinho, bispo (Ps 32, sermo 1,7-8: CCL 38,253-254) (Séc.V)


Cantai a Deus com arte e com júbilo


"Louvai o Senhor com a cítara, na harpa de dez cordas Salmodiai! Cantai-lhe um cântico novo! (Sl 32,2.3). Despojai-vos da velhice; conhecestes um cântico novo! Novo homem, nova aliança, novo cântico. O cântico novo não pertence aos homens velhos. Somente o aprendem os homens novos, renovados da velhice pela graça e já pertencentes à nova aliança, que é o reino dos céus. Por ele anseia todo o nosso amor e canta um cântico novo. Cante o cântico novo não a língua mas a vida. 
Cantai-lhe um cântico novo, cantai bem para ele! Alguém pergunta como cantar para Deus. Canta para ele, mas não cantes mal. Ele não quer que seus ouvidos sejam molestados. Cantai bem, irmãos. Diante de um musicista de bom ouvido, dizem-te para cantar de modo que lhe agrade. Ora se não foste instruído na arte musical,temes cantar para não desagradar ao artista. Não sabendo que és ignorante, ele te repreenderá. Quem se oferecerá para cantar bem a Deus, a ele que de tal modo julga o cantor, de tal modo examina tudo, de tal modo sabe escutar? Quando poderás apresentar um canto com tanta arte que absolutamente em nada desagrades aos ouvidos perfeitos? 
Eis que ele te dá um modo de cantar: não procures palavras, como se pudesses explicar aquilo com que Deus se deleita. Canta na jubilação. É isto cantar bem para Deus, cantar na jubilação. O que é cantar no júbilo? Escuta, não se pode expressar por palavras aquilo que se canta no coração. De fato, aqueles que cantam seja na ceifa, seja na vinha, seja em qualquer outro trabalho cheio de ardor, começam com palavras de cantigas a exultar com alegria; depois, a alegria é tanta que já não podem dizê-la, então abandonam as sílabas das palavras e deixam-se levar pelo som do júbilo. 
Júbilo é um som a significar que do coração brota algo impossível de se expressar. E quem merece esta jubilação, a não ser o Deus inefável? É inefável o que não podes falar. E se não o podes falar e não deves calar-te, o que te resta senão jubilar? Alegre-se o coração sem palavras, e a imensidão das alegrias não conheça o limite das sílabas. Cantai para ele com arte e com júbilo (cf. Sl 32,3)."

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Adoração ao Sangue de Cristo




Jesus, autor de nossa salvação. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, que destes vosso Sangue como preço de nosso resgate. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, cujo Sangue nos reconcilia com Deus. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, que com vosso Sangue nos purificais a todos. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, que com vosso Sangue limpais nossas culpas. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, por cujo Sangue temos acesso a Deus. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, que nos dais Vosso Espírito quando bebemos vosso Sangue. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, com cujo Sangue antecipamos as delícias do Céu. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, que com vosso Sangue fortaleceis nossa debilidade. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, que nos dais vosso Sangue na Eucaristia. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, cujo Sangue é prenda do banquete eterno. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, que nos vestis com vosso Sangue como trajes do Reino. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

Jesus, cujo Sangue proclama nosso valor ante Deus. 

Bendito sempre vosso Sangue Precioso.

            Oremos:


         "Jesus, Salvador Nosso, apresentai ao Pai vosso Sangue que, em virtude do Espírito Santo, derramastes por nosso amor. Purificados de nossos pecados no banho desse Sangue Sagrado, esperamos alcançar por ele a graça das graças eternas. Amém!"








Relíquia do Santo Sangue, na Bélgica



Do Comentário sobre o Cântico dos Cânticos, de São Gregório de Nissa, bispo (Cap.2:PG 44,802) (Séc.IV)


Oração ao Bom Pastor

           "Onde apascentas, ó bom pastor, que carregas nos ombros todo o rebanho? (pois uma é a ovelha, a natureza humana que puseste sobre os ombros). Mostra-me o lugar da quietude, leva-me à erva boa e nutritiva, chama-me pelo nome e, assim, eu que sou ovelha, ouvirei tua voz; e por causa de tua voz, dá-me a vida eterna. Mostra-me a mim o amado de minha alma (Ct 1,6 Vulg.).
            Chamo-te com esta expressão, porque teu nome supera todo outro nome e todo
entendimento e nem a natureza racional toda inteira pode dizê-lo ou compreendê-lo. Por isto teu nome, pelo qual se conhece tua bondade, é o bem-querer de minha alma para contigo. Como não te amar a ti que amaste minha alma, embora ainda manchada, a tal ponto que deste a vida pelas ovelhas que apascentas? Impossível imaginar maior amor que o trocar tua vida por minha salvação.
          Ensina-me onde apascentas (cf. Ct 1,7). Encontrando o campo saudável, tomarei o
alimento celeste; porque quem dele não se nutre não pode entrar na vida eterna. Correrei à fonte, beberei da água divina que tu proporcionas aos sedentos. Igual à fonte, deixas correr água de teu lado, veio aberto pela lança; para quem beber, ela se tornará fonte de água a jorrar para a vida eterna (Jo 4,14).
           Se me apascentares deste modo, far-me-ás deitar ao meio-dia, quando, dormindo logo na paz, repousarei na luz sem sombras. O meio-dia não tem sombra, o sol cai a pino; nesta luz, fazes deitar aqueles que alimentaste, ao pores teus filhos contigo no quarto. Ninguém será considerado digno deste repouso meridiano, se não for filho da luz e filho do dia. Quem se separa igualmente das trevas vespertinas e matutinas, quer dizer, de onde começa e de onde termina o mal, está no meio-dia e, para nele deitar-se, ali o colocará o sol da justiça.
        Mostra-me, pois, como repousar e ser apascentada e qual é o caminho para a quietude meridiana. Não aconteça que, escapando-me da guia de tua mão, pela ignorância da verdade, venha a reunir-me com rebanhos estranhos aos teus.
          Falou assim, solícita pela beleza que lhe veio de Deus e desejosa de entender de que modo e para sempre a felicidade existe."

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Do Tratado sobre o perdão, de São Fulgêncio de Ruspe, bispo (Lib. 2,11.2-12,1.3-4: CCL 91A,693-695) (Séc.VI)



Ao vencedor a segunda morte não causará dano

"Num momento, num piscar de olhos, com a última trombeta, pois soará uma trombeta, os mortos ressurgirão incorruptos e nós seremos mudados (1Cor 15,52). Dizendo “nós”, Paulo mostra que alcançarão junto com ele o dom da futura mutação aqueles que agora se mantêm na comunhão eclesial e moral com ele e seus companheiros. Querendo sugerir qual será a mudança, diz: É preciso que o corpo incorruptível se revista de incorruptibilidade, e o mortal se revista de imortalidade (1Cor 15,53). Portanto, para que haja neles a mudança da justa retribuição, precede agora a mudança da gratuita liberalidade.
Aos que nesta vida se mudaram do mal para o bem, promete-se o prêmio da futura mudança.
A graça faz com que, primeiro ressurgidos aqui espiritualmente pela justificação, comece a mudança pelo dom divino. Mais tarde, na ressurreição do corpo, que completa a mudança dos justos, a glorificação, sendo sempre perfeita, não sofrerá mudança. A graça da justificação primeiro, e depois da glorificação muda-os de tal forma que esta glorificação neles permanece imutável e eterna.
Aqui são mudados pela primeira ressurreição, que os ilumina, para que se convertam. Por ela passam da morte para a vida, da iniqüidade para a justiça, da incredulidade para a fé, das más ações para a vida santa. Por isto, a segunda morte não tem poder sobre eles. O apocalipse refere-se a isto: Feliz quem tem parte na primeira ressurreição; sobre ele não tem poder a segunda morte (Ap 20,6). No mesmo livro, lê-se: Ao vencedor a segunda morte não causará dano (Ap 2,11). Na conversão do coração consiste a primeira ressurreição, no suplício eterno, a segunda morte.
Apresse-se, então, em tornar-se participante da primeira ressurreição quem não quiser ser condenado ao eterno castigo da segunda morte. Pois aqueles que, mudados no presente pelo temor de Deus, passam da vida má para a vida santa, passam da morte para a vida e eles mesmos, em seguida, passarão da vida obscura à glória."

Dos Comentários sobre os Salmos, de Santo Agostinho, bispo (Ps 95,14.15:CCL39,1351-1353) (Séc.V)



Não ofereçamos resistência à sua primeira vinda,
para não termos de recear a segunda


        "Então todas as árvores das florestas exultarão diante da face do Senhor porque veio, veio julgar a terra (Sl 95,12-13). Veio primeiro e virá depois. Esta sua palavra ressoou pela primeira vez no evangelho: Vereis sem demora o Filho do homem vir sobre as nuvens (Mt 26,64). Que quer dizer: Sem demora? O Senhor não virá depois, quando os povos da terra se lamentarão? Veio primeiro em seus pregadores e encheu o mundo inteiro. Não ofereçamos resistência à primeira vinda, para não termos de recear a segunda.
           Que, então, devem fazer os cristãos? Usar do mundo; não servir ao mundo. Como é isto? Possuindo, como quem não possui. O Apóstolo diz: De resto, irmãos, o tempo é breve; que os que têm esposa sejam como se não a tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; e os que usam do mundo, como se não usassem; pois passa a figura deste mundo. Eu vos quero sem inquietações (1Cor 7,29-32). Quem não tem inquietações, aguarda com serenidade a vinda de seu Senhor. Pois, que amor ao Cristo é esse que teme sua chegada? Irmãos, não nos envergonhamos? Amamos e temos medo de sua vinda. Será que amamos? Ou amamos muito mais nossos pecados? Odiemos, portanto, estes mesmos pecados e amemos aquele que virá castigar os pecados. Ele virá, quer queiramos, quer não. Se ainda não veio, não quer dizer que não virá. Virá em hora que não sabes; se te encontrar preparado, não haverá importância não saberes.
            E exultarão todas as árvores das florestas. Veio primeiro; depois virá para julgar a terra; encontrará exultantes aqueles que creram em sua primeira vinda, porque veio.
            Julgará com equidade o orbe da terra, e os povos em sua verdade (Sl 95,13). Que
significam equidade e verdade? Reunirá junto a si seus eleitos para o julgamento; aos outros separá-los-á dos primeiros; porá uns à direita, outros à esquerda. Que de mais justo, de mais verdadeiro do que não esperarem misericórdia da parte do juiz, aqueles que não quiseram usar de misericórdia antes da vinda do juiz? Quem teve misericórdia, será julgado com misericórdia. Os colocados à direita escutarão: Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino que vos foi preparado desde a origem do mundo (Mt 25,34). E aponta-lhes as obras de misericórdia: Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber etc. (Mt 25,34-46).
           Por sua vez, que se aponta aos da esquerda? Sua falta de misericórdia. Para onde irão? Ide para o fogo eterno (Mt 25,41). Esta palavra suscita grande gemido. Que diz outro salmo? Será eterna a lembrança do justo; não temerá escutar palavra má (Sl 111,6-7). Que quer dizer: escutar palavra má? Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos (Mt 25,4). Quem se alegra com a palavra boa, não temerá escutar a má. É esta a equidade, a verdade.
            Porque és injusto, não será justo o juiz? Ou porque és mentiroso, não será veraz a verdade? Se queres, porém, encontrar o Misericordioso, sê tu misericordioso antes de sua chegada: perdoa, se algo foi feito contra ti, dá daquilo de que tens em abundância. Donde vem aquilo que dás, não é dele? Se desses do que é teu, seria liberalidade;quando dás do que é dele, é devolução. Que tens que não recebeste? (1Cor 4,7). São estes os sacrifícios mais aceitos por Deus: misericórdia, humildade, louvor, paz, caridade. Ofereçamo-los e com confiança esperaremos a vinda do juiz que julgará o orbe da terra com equidade, e os povos em sua verdade (Sl 95,13)."

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Catequese de Bento XVI sobre Santa Matilde de Hackeborn


Queridos irmãos e irmãs,

hoje desejo falar-vos sobre Santa Matilde de Hackeborn, uma das grandes figuras do mosteiro de Helfta, que viveu no século XIII. A sua irmã Santa Gertrude a Grande, no VI livro da obra Liber specialis gratiae (O livro da graça especial), em que são narradas as graças especiais que Deus deu a Santa Matilde, assim afirma: "Isso que escrevemos é bem pouco em comparação àquilo que omitimos. Unicamente para a glória de Deus e utilidade do próximo publicamos estas coisas, porque parece-nos injusto manter o silêncio sobre tantas graças que Matilde recebeu de Deus não tanto por ela mesma, a nosso ver, mas para nós e para aqueles que virão depois de nós" (Mechthild von Hackeborn, Liber specialis gratiae, VI, 1).

Essa obra foi redigida por Santa Gertrude e uma outra coirmã de Helfta e tem uma história singular. Matilde, com a idade de cinquenta anos, atravessava uma grave crise espiritual, unida a sofrimentos físicos. Nesta condição, confidenciou a duas coirmãs amigas as graças singulares com que Deus a tinha guiado desde a infância, mas não sabia que elas anotavam tudo. Quando soube disso, ficou profundamente angustiada e perturbada. O Senhor, no entanto, tranquilizou-a, fazendo-lhe compreender que tudo o que era escrito era para a glória de Deus e o proveito do próximo (cfr. ibid., II, 25; V,20). Assim, essa obra é a fonte principal para obter informações sobre a vida e espiritualidade da nossa Santa.

Com ela, somos introduzidos na família do Barão de Hackeborn, uma das mais nobres, ricas e poderosas da Turíngia, aparentada com o imperador Federico II, e entramos no mosteiro de Helfta no período mais glorioso da sua história. O Barão havia dado ao mosteiro uma filha, Gertrude de Hackeborn (1231/1232 - 1291/1292), dotada de uma forte personalidade, Abadessa por quarenta anos, capaz de dar uma impressão peculiar à espiritualidade do mosteiro, levando-o a um extraordinário florescer enquanto centro de mística e cultura, escola de formação científica e teológica. Gertrude ofereceu às monjas uma elevada instrução intelectual, que as permitia cultivar uma espiritualidade fundada sobre a Sagrada Escritura, sobre a Liturgia, sobre a tradição Patrística, sobre a Regra e espiritualidade cistercense, com particular predileção por São Bernardo de Claraval e Guglielmo de St-Thierry. Foi uma verdadeira mestra, exemplar em tudo, na radicalidade evangélica e no zelo apostólico. Matilde, desde a infância, recebeu e apreciou o clima espiritual e cultural criado por sua irmã, oferecendo depois a sua própria marca.

Matilde nasce em 1241 ou 1242 no castelo de Helfta; é a terceira filha do Barão. Aos sete anos, juntamente com sua mãe, visita a irmã Gertrude no mosteiro de Rodersdorf. É tão fascinada por aquele ambiente que deseja ardentemente fazer parte dele. Entra como educanda e, em 1258, torna-se monja no convento, transferindo-se, entretanto, para Helfta, na propriedade dos Hackeborn. Distingue-se pela humildade, fervor, amabilidade, limpidez e inocência de vida, familiaridade e intensidade com que vive o relacionamento com Deus, a Virgem, os Santos. É dotada de elevadas qualidades naturais e espirituais, entre as quais "a ciência, a inteligência, o conhecimento das coisas humanas, a voz de uma maravilhosa suavidade: tudo a tornava apta a ser para o mosteiro um tesouro, sobre todos os aspectos" (Ibid., Proêmio). Assim, "o rouxinol de Deus" – como era chamada – ainda muito jovem, torna-se diretora da escola do mosteiro, diretora do coro, mestre de noviças, serviços que desempenhou com talento e infatigável zelo, não somente para proveito das monjas, mas a todos desejava fazer chegar a sua sabedoria e bondade.

Iluminada pelo dom divino da contemplação mística, Matilde compõe numerosas orações. É mestra de fiel doutrina e de grande humildade, conselheira, consoladora, guia no discernimento: "Ela – lê-se – distribuía a doutrina com uma abundância que nunca havia se visto no mosteiro, e temos, ai de mim! grande temor, de que não se verá nunca mais nada semelhante. As irmãs reuniam-se em torno dela para sentir a palavra de Deus como junto de um pregador. Era o refúgio e a consoladora de todos, e tinha, por dom singular de Deus, a graça de revelar livremente os segredos do coração de cada um. Muitas pessoas, não somente no mosteiro, mas também estrangeiros, religiosos e seculares, vindos de longe, atestavam que essa santa virgem havia livrado-lhes das suas penas e que nunca tinham experimentado tanta consolação quanto junto dela. Compôs e também ensinou tantas orações que, se fossem reunidas, excederiam o volume de um saltério" (Ibid., VI,1).

Em 1261, chega ao convento uma menina de cinco anos, de nome Gertrude: é confiada aos cuidados de Matilde, com apenas vinte anos, que a educa e guia na vida espiritual até fazê-la não somente excelente discípulas, mas a sua confidente. Em 1271 ou 1272, entra no mosteiro também Matilde de Magdeburgo. O lugar acolhe, assim, quatro grandes mulheres – duas Gertrude e duas Matilde –, glória do monaquismo germânico. Na longa vida transcorrida no mosteiro, Matilde é afligida por contínuos e intensos sofrimentos, aos quais se juntam duríssimas penitências escolhidas para a conversão dos pecadores. Desse modo, participa da paixão do Senhor até o fim da vida (cfr. ibid., VI, 2). A oração e a contemplação são o húmus vital da sua existência: as revelações, os seus ensinamentos, o seu serviço ao próximo, o seu caminho na fé e no amor têm aqui as suas raízes e o seu contexto. No primeiro livro da obra Liber specialis gratiae, as redatoras recolhem as confidências de Matilde explicadas nas festas do Senhor, dos Santos e, de modo especial, da Beata Virgem. É impressionante a capacidade que essa Santa tem de viver a Liturgia nos seus vários componentes, também aqueles mais simples, levando-os à vida cotidiana monástica. Algumas imagens, expressões, aplicações às vezes estejam distantes da nossa sensibilidade, mas, se se considera a vida monástica e a sua missão de mestra e diretora do coro, colhe-se a sua singular capacidade de educadora e formadora, que ajuda as coirmãs a viver intensamente, partindo da Liturgia, todos os momentos da vida monástica.

Na oração litúrgica, Matilde dá particular relevância às horas canônicas, à celebração da Santa Missa, sobretudo a santa Comunhão. Aqui é frequentemente tomada em êxtase em uma intimidade profunda com o Senhor no seu ardentíssimo e dulcíssimo Coração, em um diálogo estupendo, no qual pede luzes interiores, enquanto intercede de modo especial pela sua comunidade e as suas coirmãs. Ao centro estão os mistérios de Cristo, com relação aos quais a Virgem Maria refere constantemente para caminhar sobre a via da santidade: "Se tu desejas a verdadeira santidade, estejas próxima ao meu Filho; Ele é a própria santidade que santifica todas as coisas" (Ibid., I,40). Nesta sua intimidade com Deus está presente o mundo inteiro, a Igreja, os benfeitores, os pecadores. Para ela, Céu e terra unem-se.

As suas visões, os seus ensinamentos, os acontecimentos da sua existência são descritos com expressões que evocam a linguagem litúrgica e bíblica. Compreende-se assim o seu profundo conhecimento da Sagrada Escritura, que era o seu pão cotidiano. A ela recorre continuamente, seja valorizando os textos bíblicos na liturgia, seja desenhando símbolos, termos, paisagens, imagens, personagens. A sua predileção é pelo Evangelho: "As palavras do Evangelho eram para ela um alimento maravilhoso e suscitavam no se coração sentimentos de tamanha doçura que frequentemente, pelo entusiasmo, não podia terminar a leitura [...] O modo com que lia aquelas palavras era tão fervoroso que em todos suscitava a devoção. Da mesma forma, quando cantava no coro, era toda absorvida em Deus, transportada por tal ardor que ás vezes manifestava os seus sentimentos com gestos [...] Outras vezes, como que tomada em êxtase, não sentia aqueles que a chamavam ou moviam e contrariada retomada o sentido das coisas exteriores" (Ibid., VI, 1). Em uma das visões, é Jesus mesmo a recomendar-lhe o Evangelho; abrindo-lhe a chaga do seu dulcíssimo Coração, diz-lhe: "Considera quanto imenso seja o meu amor: se desejas conhecê-lo bem, em nenhum lugar o encontrarás expresso mais claramente que no evangelho. Ninguém nunca ouviu falar de sentimentos mais fortes e macios quanto estes: Como o Pai me amou, assim também eu vos amei (Jo 15, 9)" (Ibid., I,22).

Queridos amigos, a oração pessoal e litúrgica, especialmente a Liturgia das Horas e a Santa Missa são as raízes da experiência espiritual de Santa Matilde de Hackeborn. Deixando-se guiar pela sagrada Escritura e nutrir pelo Pão eucarístico, Ela percorreu um caminho de íntima união com o Senhor, sempre na plena fidelidade à Igreja. É isso também para nós um forte convite a intensificar a nossa amizade como Senhor, sobretudo através da oração cotidiana e da participação atenta, fiel e atrativa na Santa Missa. A Liturgia é uma grande escola de espiritualidade.

A discípula Gertrude descreve com expressões intensas os últimos momentos da vida de Santa Matilde di Hackeborn, duríssimos, mas iluminados pela presença da Santíssima Trindade, do Senhor, da Virgem Maria, de todos os Santos, também da irmã de sangue Gertrude. Quando chegou a hora em que o Senhor desejou levá-la para Si, ela Lhe pede ainda poder viver no sofrimento pela salvação das almas e Jesus se compraz deste ulterior sinal de amor.

Matilde tinha 58 anos. Percorreu o último trecho da estrada caracterizado por oito anos de graves doenças. A sua obra e a sua fama de santidade difundiram-se amplamente. Ao chegar a sua hora, "o Deus de Majestade [...] única sua vida da alma que O ama [...] cantou-Lhe: Venite vos, benedicti Patris mei [...] Vinde, ó vós, que sois benditos do meu Pai, vinde receber o meu reino […] e a associou à sua glória" (Ibid., VI,8).

Santa Matilde de Hackeborn confia-nos ao Sagrado Coração de Jesus e à Virgem Maria. Convida a louvar o Filho com o Coração da Mãe e a louvar Maria com o Coração do Filho: "Saúdo-vos, ó Virgem veneradíssima, naquele dulcíssimo orvalho, que do Coração da Santíssima Trindade difunde-se em vós; saúdo-vos na glória e na alegria com que agora vos alegrais na eternidade, vós que, preferida entre todas as criaturas da terra e do céu, fostes eleita ainda antes da criação do mundo! Amém" (Ibid., I, 45).